Acadêmica e Cultural

DO “BOM” AO “MAU” SELVAGEM: O INDIANISMO ÀS AVESSAS

15/03/2010 10:58

O herói nacional dentro do modernismo: o olhar de Oswald de Andrade

Por: Francis Paula C. Duarte[1]

 

Dentro da iconoclastia modernista, o Romantismo era um dos alvos do passadismo a ser demolido e uma das figuras elegidas como emblema foi o personagem Peri. Menotti del Picchia chegou a escrever, no Jornal do Comércio, em 1921 (Silva Brito, p. 192), um libelo onde atacava a mitologia romântica e todos os mitos que constituíam para ele o passado e o nacionalismo piegas: "Peri é o academismo arcaico dos Durões, dos Paranapiacaba; é o marca-passo político, é o ramerrão econômico, é a unicultura tradicionalista, é a escultura do Aleijadinho, é o regionalismo estreito da literatura pseudonacional, é Canudos, é numa palavra, tudo quanto é velho, obsoleto, anacrônico, ainda a atuar nas nossas letras...". Mais tarde Aleijadinho será recuperado pelos modernistas. E a crítica reconhecerá no Modernismo traços do Romantismo. (ALMEIDA, 1999)

Mas até então o índio romântico, como dizia Oswald de Andrade, era o índio de caixa de biscoito Aymoré. O indianismo — expressão mais estandartizada do romantismo inclui num espectro ao qual pertence também a Canção do Exílio, não tanto como exaltação da nacionalidade, mas reafirmação de um lugar que não é o lugar europeu. (ALMEIDA, 1999)

Para Oswald de Andrade, a Antropofagia era, nesses termos, nada além do exercício da identidade; quer dizer, o potencial que as pessoas possuem para se legitimarem, elas próprias, em relação (ou oposição, inclusive) à Outridade hegemônica. Sendo escorada por tais valores, a antropofagia oswaldiana era uma bofetada contra todas as formas de colonialismo, sendo também um novo começo e a emancipação por meio da arte. Mesmo que não houvesse dúvida quanto ao fato de o paradigma antropófago ser o seu território, implicando isso a uma breve volta às raízes dadaístas, devo sublinhar que Siqueiros concebia também a identidade como um assunto de autenticação e não como um mero motivo de representação. (ALMEIDA, 1999)

Na marcação da cultura moderna, a síntese implícita na tradição é uma condenação tanto contra as formas alienistas ou internas de dominação política quanto uma estratégia visando à afirmação dos valores indígenas ignorados ao longo dos séculos.

O índio de Oswald de Andrade, não era o mesmo que Rosseau figurava acalentado pelo Romantismo e, entre nós, ninando pela suave contrafação de Alencar e Gonçalves Dias, conforme Andrade (1972). Tratava-se de um indianismo às avessas, inspirado no selvagem brasileiro de Montaigne, de um “mau selvagem, desta forma, a exercer sua crítica contra as imposturas do civilizado. Para Oswald de Andrade a língua sem arcadismo, não se esgotava na alforria do português falado no Brasil,

As articulações oswaldiana eram irradiadas por sua visão do uso da língua brasileira, era uma emergência de outras formas de organizações de poder decorrente da variedade étnica brasileira, especialmente de origem indo-africano e que a antropofagia responde a esses anseios. (ALMEIDA, 2000)

Oswald de Andrade propõe a antropofagia como gesto relacional próprio da cultura brasileira, na qual, muitas vezes, as diversidades se apresentam como inconciliáveis e o outro, como uma distinção, uma alteridade, é interno, formado por parte da população ameríndia, afrodescendente, oriental, asiática e mesmo europeus de imigrações mais recentes do século XX.

Na obra de Oswald, particularmente ao cunhar o conceito de antropofagia, está evidente a influência da leitura de Sigmund Freud. Um ponto levantado pelo psicanalista, em seu texto Totem e Tabu, “a apropriação das qualidades do objeto”, é apontado por muitos críticos como marca dessa influência. Em Freud, tal apropriação refere-se à devoração do pai, e esse foi o mote do modernista para proclamar seu “alto canibalismo”, um canibalismo produtivo, já que a morte do pai leva à distribuição das mulheres entre os filhos e, portanto, a sua reprodução, contra um “baixo canibalismo”, restrito ao âmbito da destruição. (ALMEIDA, 1999)

Com as possibilidades que a antropofagia abria para o pensamento cultural, seduziu pensadores do começo do século brasileiro, levando-os à trabalhar diferentemente com as referências da tradição africana, européia e ameríndia. Ao contrário de outras correntes sociológicas vigentes no Brasil, como a de Gilberto Freire, que cunhou o conceito de “democracia racial”, e de Sérgio Buarque de Holanda, o de “homem cordial”, a concepção de antropofagia não apaga a violência do encontro étnico que ocorreu em terras de Pindorama. A morte causada pela devoração, implícita ao ato antropofágico, pressupõe a destruição física do devorado e aponta para o aspecto mais condenado da antropofagia: sua ligação com o primitivo ou mesmo com a animalidade.

A antropofagia não é  uma ruptura  com as origens coloniais brasileiras e alguns vêem nisso uma forma de permanência da postura autoritária e opressiva da colonização. Como se retomasse um aspecto da vida colonial ou a reencenasse em bloco. (ALMEIDA, 1999)

Imerso na tradição, que associa o canibalismo ao brasileiro, Oswald de Andrade abandonou a imagem do “bom selvagem” para afirmar aquela que lhe pareceu mais adequada para o Brasil: a do “mau selvagem”, antropófago, que estava escondido debaixo da pele do bem comportado personagem romântico de José de Alencar, o índio Peri. Oswald elaborou o seu manifesto no contexto de transformação do começo do século, quando as referências parnasianas eram hegemônicas em um país que começava a se industrializar.

A figura idealizada do índio nobre e corajoso, em comunhão com a natureza e amigo do colonizador, foi forjada por escritores brasileiros, no auge do romantismo idealista de meados do século XIX. Movimento literário que mobilizou o Brasil nas décadas de 1850 e 1860 e estendeu-se pela América Latina, o indianismo nasceu de um nacionalismo em busca de identidade própria e encontrou no índio seu herói mítico. O movimento caracterizou-se também por tentar diferenciar a língua literária brasileira, a partir da rejeição de normas gramaticais e literárias portuguesas. Proclamada a independência, o Brasil continuava a ser a mesma sociedade agrícola e escravocrata que importava desde produtos acabados até moda e cultura. No campo das idéias o modelo era a França, e o "nobre selvagem", de Jean-Jacques Rousseau teve influência na formação do indianismo. Elemento autóctone, que lutara contra o colonizador, o índio era o símbolo perfeito para a nacionalidade nascente, e podia ser glorificado sem risco de estimular rebeldias, pois além de já ter sido repelido para fora das áreas civilizadas, não ocupava posição significativa na produção econômica. Podia assim prestar-se à metáfora do romantismo ressentido e regressivo contra a realidade burguesa, que idolatrava o dinheiro e mostrava-se indiferente à sensibilidade romântica. Precursores e expoentes.  (ALMEIDA, 1999)

Antônio Gonçalves Dias em seu poema "I-Juca-pirama", retrata o índio bravo, rebelde e generoso, no qual o poeta varia livremente a métrica do poema de episódio para episódio. Na obra dos indianistas brasileiros estão presentes as idéias fundamentais de Rousseau, especialmente a do contato direto com a natureza como forma de aprendizado e formação do caráter.

O “Manifesto Antropófago” (1928) de Oswald de Andrade lançava um plano que teria um maior desenvolvimento posterior: uma espécie de canibalismo descolonizador, desenvolvendo o desejo  por um modelo de pensamento cultural que reforçava os projetos lançados em 22: a vernaculização da “língua brasileira” calcada na síntese das expressões regionais da prática oral de todo o Brasil.

Oswald coloca em cena o conflito com os modelos clássicos europeus; a partir daí, o “Manifesto Antropófago” passa a ser um modelo de análise para a nossa cultura, uma vez que se apresenta, na visão de Augusto de Campos, como “a única filosofia original brasileira” (1976,:124), aqui resumida por Haroldo de Campos:

 

“...com a ‘Antropofagia’ de Oswald de Andrade, nos anos 20 (retomada depois, em termos de cosmovisão filosófico-existencial, nos anos 50, na tese A Crise da Filosofia Messiânica), tivemos um sentido agudo da necessidade de pensar o nacional em relacionamento dialético com o universal.(...) Ela não envolve uma submissão (uma catequese), mas uma transculturação: melhor ainda uma ‘transvaloração’: uma visão crítica da história como função negativa (no sentido de Nietzsche), capaz tanto de uma de apropriação como de desapropriação, desierarquização, desconstrução” (1983,:109)

Na cultura brasileira, a inserção de índios e negros não se fazia apenas como personagens, tal qual no romantismo, mas também por seus signos e símbolos distintores. A mitologia indígena, a religião afrodescentente, a música, começam a ter lugar ao lado das reivindicações políticas dessa população. O contexto social brasileiro estava repleto de diferentes reivindicações da população excluída do poder. Quando os modernistas trazem as culturas negras e indígenas para o plano da linguagem artística, estão apenas refletindo as questões inexoráveis do cenário de sua época.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

BIBLIOGRAFIA

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SCHWARZ, Roberto. Que horas são? São Paulo: Cia das Letras, 1987

 

 



[1] Professora de Literatura Brasileira e Língua Portuguesa na Rede Municipal de Ensino de Volta Redonda /RJ e Pós-graduanda em Literatura Brasileira pelo Centro de Ensino Superior de Valença /RJ (FAA)

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