Acadêmica e Cultural

O Fenômeno da Hipercorreção Linguística: Entenda um Pouco Mais

06/03/2010 14:24

Inúmeros conceitos de diversos especialistas dão conta de um fenômeno lingüístico que é crescente na sociedade brasileira, ainda que não se disponha de dados empíricos para comprovar: a hipercorreção. Conforme o dicionário de lingüística Dubois (2002), hipercorreção corresponde à busca do uso correto que se eleva “acima da correção” em uma língua. Calvet (2002:78) afirma que se trata de uma restituição exagerada das formas lingüísticas prestigiosas. Já Bortoni-Ricardo (2004:28) dá-nos uma informação trazendo acréscimos ao conceito de hipercorreção: “Chamamos hipercorreção ou ultracorreção o fenômeno que decorre de uma hipótese errada que o falante realiza num esforço para ajustar-se à norma-padrão. Ao tentar ajustar-se à norma, acaba por cometer um erro”.

 

A seguinte expressão: “DINHEIRO EU TENHO, SÓ ME FALTA-ME GRAMOUR” de Lady Kate, personagem do humorístico Zorra Total (Rede Globo), é resultado de um esforço exacerbado da personagem para falar o que considera correto quando supõe não fazê-lo, no entanto, o objetivo não é alcançado, posto que ocorrem “desvios” do que prega o padrão normativo e de prestígio da língua. E o que seria apreciável passa a ser cômico, motivo de exposição do falante ao ridículo por aqueles que dominam a norma-padrão da língua. Eis um exemplo do fenômeno de hipercorreção lingüística.

 

Segundo a gramática normativa, a expressão apresenta erros crassos, chamados barbarismos, com destaque para o solecismo de colocação pronominal no trecho “me falta-me” (o certo seria “me falta”, com o pronome proclítico e não enclítico e proclítico simultaneamente). Também nota-se uma cacofonia exemplificada pela expressão “gramour” (conforme a concepção sociolingüística isto é exemplo do fenômeno rotacismo, que se concretiza na assimilação do /l/ por /r/, como em “chicrete”, “pranta” e “Cráudia”). O jargão supracitado, o qual faz parte do repertório sociolingüístico de Lady Kate não é diferente do que se encontra no português brasileiro empregado no cotidiano, principalmente quando se trata do aspecto oralidade.

 

Calvet (2002:77) ilustra o fenômeno da hipercorreção, também com exemplo de uma “lady”, trata-se da personagem da peça My Fair Lady, Eliza Doolittle, uma florista, a qual gostaria de se tornar uma lady, uma dama da sociedade. Para tanto, ela procura um professor de fonética para ensinar-lhe a forma prestigiosa de falar a língua inglesa. A prática da hipercorreção pode acontecer por estratégias diversas: dentre elas o de fazer crer em um domínio da língua legítima (caso de Lady Kate) ou fazer esquecer a própria origem (Eliza Doolittle). O fenômeno da hipocorreção é obviamente, o contrário da hipercorreção e está ligado à segurança lingüística. O falante não busca nenhum outro modo prestigioso, pois não questiona seu próprio modo de falar.

 

A hipercorreção apresenta profunda relação com a insegurança lingüística, por considerar o seu modo de falar pouco prestigioso, o falante tenta imitar de maneira exacerbada as formas prestigiosas. Segundo Calvet (2002) as atitudes lingüísticas, tais como a hipercorreção, possuem profundo enraizamento social. Este enraizamento é refletido nas palavras de Bourdieu apud Calvet (2002:78):

 

 

A hipercorreção pequeno-burguesa que encontra seus modelos e instrumentos de correção junto aos mais consagrados árbitros do uso legítimo, acadêmicos, gramáticos, professores, se defini na relação subjetiva e objetiva com a ‘vulgaridade’ popular e a ‘distinção’ burguesa[...] o evitamento consciente ou inconsciente das marcas mais visíveis de tensão e da contenção lingüística dos pequeno-burgueses[...] pode levar os burgueses ou os intelectuais à hipercorreção controlada que associa o relaxamento convicto e a ignorância soberana das regras minuciosas à exibição da facilidade nos terrenos mais perigosos.

 

 

  

 

Em alguns livros didáticos ou paradidáticos, encontram-se facilmente indícios ou situações de hipercorreção explícitas. Nos exemplos a seguir, um desses “consagrados árbitros do uso legítimo” (conforme Bourdieu), será solicitado por um “pequeno-burguê solicitado por um pequeno-burgues erigosos.cto e a ignoros de correça imitar de maneira axacerbada s”. O texto foi retirado do livro Guia prático do português correto, de Moreno(2003:45, grifo meu):

 

 

Podemos dizer que suicídio está para suicidar assim como herbicida está para herbicidar?

O Doutor mostra que não é bem assim que funciona nossa língua.

Olá, Professor: minha dúvida nasceu de uma conversa com um colega agrônomo que crê ser herbicidar um verbo que pode ser conjugado normalmente, descrevendo a ação de “matar ervas”. Eu lhe disse que nem todo substantivo pode se tornar um verbo e que correria menos risco se falasse apenas “aplicar herbicida”. No entanto, precisamos de seu voto credenciado e decisivo à questão.

 

                                                 Fábio M. – Santa MARIA (RS)

 

 

 

 

Caso queira se informar mais sobre este fenômeno linguístico tão recorrente e que, infelizmente, fomenta atitudes tão preconceituosas, leia o livro Sociolinguística: uma introdução crítica, de Luis Jean-Calvet (Editora Parábola), a obra aborda esta questão em um capítulo específico, portanto, vale a pena. Outras relevantes recomendações são os livros de Maria Marta Pereira Scherre (UFES/ CNPq) e Marcos Bagno (Unb/CNpq), respectivamente, Doa-se lindos filhotes de poodle: variação linguística, mídia e preconceito (Editora Parábola, 2005) e Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação linguística (Editora Parábola, 2007).

 

 

Referências

 

BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Educação em língua materna: a Sociolingüística na sala de aula. 4.ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2004.

 

CALVET, Jean-Louis. Sociolingüística: uma introdução crítica. São Paulo: Parábola Editorial, 2002.

 

MORENO, Cláudio. Guia prático do português correto. Porto Alegre: L&PM, 2003.

 

 

Por Edson Santos

Formado em Letras pela UEA, Acadêmico de Pedagogia da UFAM e

Mestrando em Linguística pela UFF e atual correspondente direto do Rio de Janeiro

 

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