Acadêmica e Cultural

Identidade

03/05/2010 11:59

Identidade

Kenedi Azevedo

 

Sei tudo que aconteceu com você.

A sua infância foi repleta de fatos importantes, alguns não deveriam ter acontecido, mas como você mesmo falou. O destino muda a vida das pessoas. Não acredito nisso, apesar de acreditar em você. Prometo que vou falar tudo. Não deve esquecer que fui sua confidente. Agora você me ouve.

 Começo quando você tinha apenas cinco anos, uma idade que para muitos não tem importância, mas para alguns, sim, como é seu caso. Sua mãe havia lhe esperado por muito tempo. Seu nascimento foi uma festa, todos queriam ver a menina negra de olhos verdes; sua mãe não comemorou seu primeiro aniversário, mas o quinto foi comemorado como seu nascimento; você crescia e se tornava cada vez mais linda, era uma beleza exótica, muitos diziam, outros se admiravam pelo fato de uma negra ter traço de uma pessoa branca, e por isso você era bonita, sua mãe não ligava o importante, para ela, é que a filha estava já com cinco anos e aquele detalhe dos olhos não importava.

 Lúcio estava sozinho no casarão lembrando a vida difícil que tivera na infância. Seus pais casaram-se contra a vontade dos familiares; tiveram dificuldade na criação do filho, que nascera prematuro e não mamara na mãe, tornando a vida complicada. Mesmo assim não desistiram do filho nem de viverem juntos. Afinal, o homem deixa a família para se unir á mulher, tornando-se uma só carne, só carne. Só nós homens não sabemos disso...

Quando você completou doze anos, sua mãe comprou uma caixa que continha todo tipo de maquiagem, afinal, você já era uma mocinha, como dizia sua mãe. Você pegou o estojo, abriu e em seguida tirou o pó de arroz de dentro e começou a passar no rosto; escolheu a cor branca. Foi o dia mais feliz da sua vida, pois havia conseguido algo que sempre desejou: esconder a cor de sua face. Toda noite, após todos se recolherem, você fazia o mesmo processo e ficava imaginando como seria se tivesse aquela cor. Talvez, por isso, não saía de casa sem o guarda sol, detalhe que os vizinhos não entendiam, mas isso não importa agora...

O menino se tornara um jovem bonito, sisudo e inteligente, capaz de fazer qualquer pessoa mudar de opinião ou acreditar em sua conversa; gostava de inventar histórias em que o antagonista se dava sempre bem. Vivia se questionando se Deus criara o homem ou o Homem que criara deus. A mãe vivia tentando mudar o modo de vida que o filho estava levando. Afinal ele era a herança de uma juventude que lutou pela liberdade; seus pais o ensinaram a ser como eles não foram. Até que um dia Lúcio conheceu Clara e se apaixonou, foi algo inesperado, ninguém acreditava, pois ele nunca tinha trazido namorada alguma em casa. O que chamava atenção de Lúcio em sua namorada eram seus olhos cor de esmeralda, talvez mais brilhantes, ficou fascinado com aquela beleza toda. Passaram um mês namorando, logo a pediu em casamento. Ela aceitou de imediato. O casamento foi discreto, só compareceram os familiares do casal. Foram morar juntos, depois de um ano Lúcio começou observar alguns comportamentos estranhos da mulher como: passar hora trancada no quarto. Ele não agüentava mais ver a mulher presa em casa. Decidiu investigá-la...

 Você se tornou uma menina linda e infeliz para os outros, mas para mim continuava sendo aquela moça de conversa suave e agradável que eu gostava de ouvir sempre que você estava macambúzia ou radiante. Até mesmo sua vida de casada era  assunto nas conversas que tínhamos, trancadas em seu quarto, sem que ninguém nos perturbasse. Gostava de ver seus olhos brilhantes como o sol e misteriosos como o luar me observando atenta...

Lúcio resolveu sair e voltar para casa sem avisar. Quando entrou em casa percebeu o silêncio. Um silêncio gritava a seu ouvido pedindo socorro. Subiu a escada e olhou a mulher por entre a fechadura da porta do quarto de casal e a viu com a face embranquecida. Não falou nada, pois não entendia essas coisas de mulher...

Um dia você entrou em seu quarto, quando algo como se fosse uma flecha, ou talvez, um raio de luz inundou seu ser. Não dava para entender se era sonho, devaneio ou delírio. Quando você se deu conta, alguém lhe observava. Alguém com um olhar triste. Sua sensação era de estar sonhando, mas tudo parecia tão real. Na verdade você estava dentro do espelho do quarto. O ser que lhe olhava de fora do espelho não era desconhecido para você. Rosto branco; pele mais branca que a neve. Nem o calor escaldante de Manaus fez-lhe despertar tão facilmente...

Quando Lúcio voltou mais tarde viu a mulher enfrente ao espelho de olhos fechados, chamou-a pelo nome, sem sucesso. Passada algumas horas, sua mulher despertou perguntando da amiga que conversava. Dizia que acreditava no destino agora, e não na amiga. Ele não entendeu nada, pois Clara não tinha amiga. Desde o casamento que ela não saía de casa por causa do sol lá fora. Passaram-se alguns dias, mas Clara não estava bem ainda. Dizia que devia falar para amiga tudo que acontecera em seu sonho. Lúcio tentou impedir-lhe de se aproximar do espelho. Tempo perdido. Até sua conversa persuasiva não a impediu de ficar em frente de sua imagem. Ele ficou apenas de lado vendo a esposa chamar o reflexo, de Clara.

Ela havia enlouquecido e Lúcio resolveu voltar para casa deixando-a sozinha falando com o espelho e o rosto embranquecido de maquiagem. Pelo menos na loucura ela realizou o sonho de ser branca. Já ele não estava preparado para viver aquela vida que estava iniciando ali agora. Quem era o antagonista nessa história real?

 

 

 

 

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